“A sorte maior será a do autor que, na velhice, puder dizer que tudo o que nele eram pensamentos e sentimentos fecundantes, animadores, edificantes, esclarecedores, continua a viver em seus escritos, e que ele próprio já não representa senão a cinza, enquanto o fogo se salvou e em toda parte é levado adiante. (…) O pensador ou artista que guardou o melhor de si em suas obras sente uma alegria quase maldosa ao olhar seu corpo e seu espírito sendo alquebrados e destruídos pelo tempo, como se de um canto observasse um ladrão a arrombar seu cofre, sabendo que ele está vazio e que os tesouros estão salvos.” NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. #208 e #209.
Eu, que não tenho fé, nem sou muito chegado a otimistas esperanças, encontro conforto para a aflitiva consciência da mortalidade nesta simples mas luminosa idéia: algo pode ser salvo do nada com o providencial auxílio do Verbo. A escritura pode fazer às vezes do bote salva-vidas que arrasta à praia mais próxima o que conseguimos salvar do naufrágio. A morte seria mais tenebrosa se não houvéssemos inventado a linguagem: através dela, os tesouros podem ser salvos. Pois comunicados. Mensagens na garrafa lançadas às ondas sempre moventes do Tempo, destinadas a inimagináveis viagens e encontros. Inventamos um meio para que os mortos possam nos falar, e para que falemos com os vivos quando mortos estivermos.
Christian Bobin chega a dizer que o melhor que temos a fazer nesta vida é vivê-la na perspectiva de que ela nos será tomada, que nos foi apenas emprestada por precário tempo (morte certa, hora incerta…). Tratar de auxiliar a morte em seu serviço ao tornarmo-nos leves e despojados como quem sabe que “deste mundo nada se leva”. A sabedoria estaria numa abertura d’alma que entrega ao outro aquilo que os avaros do espírito tentam reter na prisão condenada de si mesmos, no navio indo a pique do corpo, cegos pela falsa noção de que a vida seja uma posse. Que a ceifadora não tenha quase nada a nos tomar, diz Bobin, pois tudo já estará entregue, passado adiante, tornado público, compartilhado com a comunidade dos vivos. Os que ficam e os que ainda estão por nascer.
Talvez alguns considerem trivial o consolo de que a vida pode ser efêmera mas suas obras perduráveis. Já eu, considero este o único horizonte realista de “imortalidade”. Shakespeare ainda está entre nós, apesar de seu crânio já estar mais corroído que aquele de Yorick e não restar um só neurônio daqueles que produziram tantas genialidades. O gênio esvazia seus cofres de seus tesouros e os deposita em praça pública antes que o bandido-piromaníaco-ceifador chegue para reduzir tudo a cinza e esquecimento…
Suspeito, pois, que belas produções humanas são genuínos filhos da angústia… Mortais que se afligem com a certeza de sua iminente desaparição tentando fixar em alguma forma perene aquilo que sentem ser efêmero e precário… Talvez não haja melhor escritura do que aquela de alguém que, sentindo seu barquinho encher-se de água e começar a afundar, consagra ao papel, com a urgência angustiosa dos naufragantes, aquilo que julga poder ser útil para a jornada dos que ficam sobre as ondas. Há beleza quando se é capaz desta pequena caridade, feita de despossuimento, de transfusão, de passagem de sopro de vida… Todo tesouro guardado apodrece. E todo tesouro genuíno é um tesouro compartilhado. Guardar é perder. Dar é ganhar.
“Happiness is only true when shared.” (Into The Wild)
“E que importa restar em cinzas, se a chama foi bela e alta?” (Quintana)
Naufraguemos com os cofres vazios!
Publicado em: 09/03/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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